Senna: quem te viu e quem te vê


Fiquei pensando em que eu poderia acrescentar ao começar a teclar mais um texto sobre Ayrton Senna nestes 20 anos de sua morte. Ainda aqui, no primeiro parágrafo, eu não tenho ideia nenhuma e acho que não vou acrescentar nada mesmo. Mas vou em frente.

Só sei que esta semana, estes dias, trouxeram de volta para o país um pouco daqueles momentos da torcida com seu herói, seu ídolo, o ícone Ayrton Senna. E tem mais adjetivos para este menino-homem que morreu com míseros 34 anos de idade, mas já com uma postura de veterano, veterano na vida, nos negócios e nas visões.

Depois de duas décadas, o Brasil continua precisando de seus heróis, de seus vingadores. No filme documentário Senna, que só assisti na última quinta-feira (acreditem ou não), uma senhora dá seu depoimento e diz que o Brasil precisa de comida, de saúde e de um pouco de alegria, e termina dizendo que esta alegria havia ido embora com a morte do tricampeão de Fórmula 1.

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Continuamos precisando de muito mais coisas. Comida para mais gente há agora, ainda que os meios sejam absolutamente equivocados em minha maneira de ver e pensar. Dizem que a saúde melhorou, mas eu não vi isso da maneira como se apregoa por aí. Eu tenho convênio médico, me considero privilegiado por isso, mas o preço deste privilégio é cada vez mais caro e também me impeça de ver mais nitidamente os problemas que por aqui insistem em continuar existindo.

A alegria, que se foi naquele maio de 1994, voltou meses depois com a conquista do tetracampeonato de futebol pela nossa seleção, motivada e guiada pelo tema da vitória das manhãs de domingo daquele ano que seria inesquecível pelas conquistas dos tetracampeonatos nas pistas e nos campos. Não que a conquista da seleção tenha substituído a dor da perda de Senna. Nunca! Mas foi um alento.

Vieram conquistas enormes no voleibol, onde nos tornamos imbatíveis. A natação nos trouxe Cesar Cielo, o atletismo Maurren Maggi, as argolas Arthur Zanetti, as quadras de futsal Falcão, para citar alguns. Mais recentemente, Anderson Silva e sua maneira debochada de bater nos adversários de MMA talvez tenha trazido um pouco do carisma de um atleta brasileiro no ferrenho e competitivo mundo dos esportes. Não gosto do esporte MMA em si, mas Anderson Silva é um vencedor nos Estados Unidos, país desenvolvido, e jogou a autoestima do brasileiro em patamares altos, mas pouco semelhantes aos que Senna nos colocava. Ah, e não posso esquecer do Guga, outro que chegou onde jamais imaginamos chegar antes no tênis masculino. Um pouco de alegria, sim, mas notem como nenhum deles, chegou a ameaçar o posto de Senna no quesito idolatria. Acho que Senna só perde para Pelé em popularidade, mundialmente falando.

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Claro que o fato de Senna ter morrido na pista, ainda em atividade, na liderança de um grande prêmio e ao vivo, pesa. E dói mais. A história que cada ser constrói em vida é única, pode ser rica ou não, mas a maneira como a morte nos encontra pode ser decisiva para eternizar sentimentos que, por vezes, eram impensados. Não que a maneira como Senna morreu sobreponha a tudo o que ele realizou em vida, nada disso, mas é claro que a dose dramática de uma perda inesperada, de uma falha mecânica, de horas de informação desencontrada e da certeza de que o piloto brasileiro seria ainda mais vitorioso, trazem um misto místico e revoltante que só mesmo alguns tem direito. É só olhar para Michael Schumacher para entender a diferença, ainda que lhe falte alguns adjetivos que sobravam em Senna. É assim que eu penso.

E para quem me acompanha aqui, há um ano eu dei a notícia da morte de Ayrton Senna de uma maneira bem diferente, provocando ira de uns, reflexão em outros, e um certo clima que variou entre a mais pura fantasia ao mais rancoroso desrespeito entre os que leram. Foi interessante.

Lembranças e mais lembranças.

Por falar em lembrança, justa a memória pela morte do austríaco Roland Ratzenberger, no dia anterior. Eu estava na faculdade, sábado pela manhã. Hora do intervalo para passar no banheiro e comer alguma coisa nas várias barracas da calçada. Em uma delas, uma pequena TV, aquelas de cinco polegadas em preto e branco. Imagem ruim e o pasteleiro dizendo algo como “morreu um lá hoje”. Pensei que ele assistiu uma gravação do dia anterior, do acidente de Rubens Barrichello e perguntei se era brasileiro quem tinha se acidentado. A negativa dele me deu um frio no estômago e me fez esperar com ansiedade pelo noticiário da hora do almoço, quando vi o mais terrível acidente de Fórmula 1 que tenho lembrança.

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Carro destruído com o cockpit lateralmente rasgado, a cabeça pendida com o capacete branco manchado em vermelho, o que parecia ser sangue. Massagem cardíaca. Imagens muito fortes e tristes. Quis o destino que Ratzenberger fosse “o outro” na história do final de semana mais trágico da categoria, mas isso não tira a importância de sua perda, oito anos depois da última morte na categoria, que aconteceu em 1986 com o italiano Elio de Angelis, em treino particular pela equipe Brabham.

O resultado deste final de semana negro de 1994 foi visto e sentido por uma série de medidas em prol da segurança, o que já era assunto dos pilotos, inclusive de Senna, antes mesmo da Tamburello o levar. Os circuitos existentes foram redesenhados em alguns pontos. Imola, por exemplo, ainda foi palco da Fórmula 1 até 2006 com a retirada da famosa curva assassina. Circuitos novos já receberam áreas de escape quilométricas, e a velocidade no pitlane segue sendo reduzida. A adoção do HANS como equipamento obrigatório já ajudou muita gente a não ter “torcicolos”, mas, sem dúvida, os carros foram os mais afetados. A principal mudança, a altura do cockpit, salvou a cabeça de Alonso em 2012 na largada do Grande Prêmio da Bélgica, por exemplo.

Nestes 20 anos, muitas coisas marcantes puderam ser revistas e, algumas, desvendadas, como o fato de Bernie Ecclestone ter dado a notícia ao irmão de Senna, Leonardo, ainda no autódromo e ainda com a corrida em andamento. Isso já era ventilado aos quatro cantos desde sempre, mas foi a assessora de Senna na época, Betise Assumpção, que confirmou com todas as palavras o que aconteceu em um dos motorhomes naquele domingo. Aliás, das ausências mais sentidas nestes dias, a da família é a mais importante. Leonardo Senna não mais falou nada.

Os anos passaram e se tornou conhecido o fato de que Senna morreu na pista pelas lesões neurológicas, embora seu coração tenha parado horas depois. É sabido também, hoje, que existe sim a filmagem completa do acidente pela câmera on board, mas ninguém verá. Sabe-se que o fotógrafo Angelo Orsi, que trabalhava para a revista Autosprint, da Itália, tem fotos que ele mesmo fez da retirada do piloto brasileiro do carro, como também a retirada do capacete. Segundo ele, fotos impublicáveis pela dimensão da violência do acidente. Nada que mude o curso da história.

Mas, dentre tudo que vi e revi, não consigo pensar em outra coisa que não o evento programado em Imola para reverenciar aquele que foi, para muitos, o melhor de todos os tempos.
Foram 20 mil pessoas presentes na quinta-feira, dia 1º, no circuito. Pessoas que viram as corridas de Ayrton Senna e que levaram seus filhos para que soubessem quem foi aquele paulista, torcedor do Corinthians. Dentre os mais famosos, Kimi Raikkonen e Fernando Alonso estiveram representando a Ferrari. Gerhard Berger, ex-piloto da escuderia e ex companheiro de Senna na McLaren também lá esteve. Brasileiros, alemães, belgas, italianos e até franceses. Muitos japoneses também, sua segunda maior torcida no mundo. Isto para mim é definitivo, como foi há 20 anos.

Não imagino nenhum brasileiro enrolado na bandeira alemã, ou espanhola, ou inglesa, ou finlandesa. Não imagino que, em caso de tragédia em território nacional, mais especificamente em Interlagos, receberemos com segurança, com reverência e respeito, cerca de 20 mil pessoas que, por um motivo ou por outro, torcem para alguém que não é nascido no Brasil. Não consigo acreditar que consigamos dividir o Ayrton Senna do Brasil com o resto do mundo porque continuamos sendo o mesmo país de 20 anos atrás, ou ainda pior. Um país que precisa de heróis, de vingadores, como eu disse no início, e Senna os representa.

Ele que dizia que seu limite era acima do dos outros pilotos. Estava certo. Como talento natural, velocidade pura, Senna é inigualável. Um mito que correu riscos, pilotou com dureza e ousadia, arrojo.
Errou algumas vezes. Para se defender das acusações de seu maior rival na Fórmula 1, Alain Prost, que dizia que o brasileiro só era assim tão determinado e ousado porque se apegava demais a religião e a Deus, o que o fazia pensar que era imortal. Os anos trataram de mostrar que este, talvez, tenha sido o seu maior erro Ayrton, admitir que era mortal como todos nós. O mundo, vinte anos depois, não te vê assim, campeão. Parece que você vai aparecer de algum motorhome, entrar em um carro e sair, de novo, como sempre fez, para buscar seus limites.

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Lauro Vizentim

Lauro Vizentim é Engenheiro Mecânico, trabalha há mais de duas décadas na indústria de automóveis. Gosta de criação, design e de... carros. Quando estes três gostos se juntam em uma corrida, tudo se completa. Acompanha a Fórmula 1 desde criança e colabora com o No Trânsito desde 2009.

8 Responses

  1. Marisa says:

    Excelente! Parabens Lauro e toda equipe do no transito.

  2. Luciana Mara Bovo says:

    Parabéns pelo belíssimo texto, aliás como sempre.
    Há 20 anos atrás, você também poderia ter mudado o rumo da sua história, optanto pelo jornalismo.
    Será que não pode tentar ainda????
    Pense nisso.

  3. Glauco de F. Pereira says:

    Belíssimo texto, Lauro! Trabalha com as palavras como um ourives trabalha com o ouro e pedras preciosas, na criação de obras que, seguramente, não terão cópias.

    De tudo que se leu e viu estes dias, o seu texto foi, dentre os que li, aquele que sintetizou de maneira mais correta e sem pieguices este final de semana que entrou para a história.

    Extraí de tudo o que li a seguinte lição: o dinheiro, interesses comerciais e outros mais sempre foi, é e sempre será o único combustível que move a F1!

    Vejamos: se, com a morte de Roland Ratzenberger no treino de sábado, na pista, como foi, todas as atividades do fatídico final de semana teriam que ter sido interrompidas, não é mesmo? Com isto, talvez não teríamos a morte de domingo, quem sabe…

    Mas, os interesses comerciais, financeiros e contratuais de Sir Bernie Ecclestone levaram a “mascarar” o local e momento exato da morte no sábado para que o circo continuasse e, com isto, o que tivemos: mais um morte no domingo!

    Roma e o Coliseu, na época dos Imperadores, era “apredizes” perto de Sir Bernie…

    Claro, nunca nenhuma autoridade judiciária ou judicial, passado tanto tempo, poderá responsabilizar alguém pela morte, tanto de sábado, quanto de domingo, mas, usando uma teoria que foi utilizada para a responsabilização dos crimes praticados em memória recente em nosso País, poderíamos até cogitar da responsabilização de Sir Bernie pela morte.

    Claro, muitas outras teorias foram levantadas, como a solda da barra de direção, a perda de pressão nos pneus pelas voltas atrás do pace car a baixas velocidade, levando ao esfriamento dos pneus e consequente queda de pressão, a pressão sofrida naquele início do campeonato após maus resultados, a indigiribilidade dos veículos, após a retirada dos controles eletrônicos dos veículos naquela temporada, enfim, um sem número de concausas que levaram ao resultado final.

    Tirando a idolatria as vezes, em minha opinião, exagerada por alguns meio de comunicação, a morte serviu para muitas mudanças relativa a segurança de pilotos, espectadores e todos aqueles que fazem parte do grande circo.

    A morte no palco, que são os autódromos, equivaleria a morte de um grande ator em cena, ou seja: morre o autor, nasce o mito! Talvez venha daí a idolatria…

    Mas a mola principal, ou seja, o dinheiro, continua lá, movendo a tudo e todos…

    • Doutor Glauco,

      Obrigado pelo incentivo de sempre. Mesmo com sua insistência em me colocar no patamar de ourives, me considero apenas um bom designer de bijuterias apenas.
      Sobre dinheiro, claro que é ele que move o circo. Independente do motivo (claro que a morte de um piloto é o maior deles), as despesas com logística, devolução de ingressos, incompatibilidade de datas, etc, é impossível de ser administrada. Uma coisa não justifica a outra, mas me parece que, pela lei, havia pulsação e respiração, embora o quadro neurológico fosse irreversível.
      Quando tratam Senna como piloto e atleta, há pouco o que se discutir. Como ser humano há muito mais a se discutir. Agora, quando o querem colocar como “santo”, aí não dá nem pra começar uma discussão porque ela não tem fundamento.
      Ele fez por onde ser reconhecido e idolatrado.
      Eu já falei aqui (acho), mas meu maior ídolo é Nelson Piquet, por quem talvez eu não derramei e provavelmente não derramarei uma lágrima nunca, mas confesso que me chorei algumas vezes neste último feriado. Vai explicar…
      Um abraço.

      • Glauco de F.Pereira says:

        Então somos do mesmo time, Lauro! Sou fã incondicional de Piquet!

        E, talvez por seu jeito de ser debochado, ao contrário de Senna, que fazia questão do “bom mocismo”, Piquet não tem o seu valor tão reconhecido como ídolo de uma geração, como acho em minha modesta opinião. E, além disso, ídolo construído sem o apoio da mídia, como Senna.

        • Fábio Abade says:

          Somos 3 então.

          Piquet infelizmente é esquecido nessa idolatria que fizeram sobre o Senna. Coisas de Galvão…

          Lauro, eu fico besta de ler que ele foi “santo” e “herói”….. herói de quê??

          Mas isso eu deixo pro fãs do Senna discutir entre eles.

          • Então, Fabio…

            Piquet é esquecido porque não é midiático. Nunca fez questão de ser nem de ter seu nome ligado ao “bom mocismo”. É o piloto brasileiro que eu vi ser tricampeão primeiro. E que eu vi, quando perdeu o título para Prost em 1986 naquele GP que estourou o pneu do Mansell, em Adelaide, sorrindo no pódio com o segundo lugar e dando uns tapinhas na bunda do Prost como se nada tivesse acontecido. Um cara ímpar, verdadeiro, talentosíssimo e malandro.

            Quanto ao Senna, é inegável sua habilidade em ser rápido ao extremo quase que 100% do tempo. Seus feitos são realmente dignos de um mito, e isso é para sempre. Discutir sua “santidade” me incomoda, porque ele poderia ser tudo, menos santo. Quanto ao seu heroísmo, aí é aquela coisa de ser fantástico e de aparecer no Fantástico logo em seguida, com mais uma bravura realizada. Teve GPs que ele venceu em que ele foi mágico, mas teve alguns que foram naturais, melhor carro, largou na frente e venceu. É um herói para muita gente, foi para mim por algumas vezes, e talvez mereça essa consideração sob o aspecto mais romântico.

            Um abraço.

  4. rodrigo losi says:

    Há 20 anos perdiamos um idolo e nascia uma eterna fonte de inspiração.

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