Entre o bem e o mal


Que me desculpem os que me acompanham falando apenas sobre Fórmula 1, mas agora o papo é outro, e é sério. Portanto, tirem as crianças da sala.

Eu havia prometido não falar de futebol, aborto, casamento gay, pedofilia, etc, mas arrumamos uma polêmica boa esta semana e eu não tenho o hábito de ficar “em cima do muro”. Eu sei que a coluna que escrevo agora vai gerar mais alguns comentários, mas meu objetivo principal é que ela cause reflexões apenas. Não estou acima do bem e do mal para ser seguido como exemplo. Estou sempre entre estes dois extremos e, através de algumas situações vividas e outras tantas ouvidas, sei exatamente para que lado aponta o meu caráter.

Antes de tudo, vivemos em um país em que se têm algumas liberdades, mas sabemos também que é um país hipócrita por natureza. E com a evolução de meios de comunicação em massa como a internet, todos nós estamos expostos e sujeitos a situações que vão do divertimento ao constrangimento, do belo ao ridículo, do extraordinário ao absurdo. E aí entra a questão do julgamento baseado em valores individuais.

O vídeo que o nosso amigo Guilherme postou esta semana aqui no blog foi alvo dos mais extremos comentários, tanto positiva quanto negativamente. Mas, afinal, por que opiniões tão diferentes se todos que aqui acessam, creio eu, são apaixonados por carros, por velocidade, por adrenalina, por ultrapassagens e, por que não, pelo perigo? Simples até de entender. É que achamos desculpa para tudo, principalmente quando entendemos que uma situação, mesmo não sendo correta, nos diverte, nos inspira, nos faz sentirmos poderosos.

O mais curioso daquele post com aquelas imagens é que ninguém, em nenhum momento, questionou a habilidade de “drifter boy”, habilidade esta que realmente deve causar inveja a alguns visitantes. Portanto, por ele ser um cara habilidoso, por ter este dom, um carro adequado, uma estrada deserta, uma equipe de apoiadores e um canal de divulgação, torna-se automaticamente nosso herói, nosso exemplo, certo? Não é bem assim. Ao menos, não em minha opinião.

Repito aqui o que disse nos comentários naquela oportunidade. Não importa o carro, a via, a hora. A irresponsabilidade foi maior que o talento do nosso drifter boy. A exposição, que julgo desnecessária, até porque consta que o mesmo rapaz freqüenta os lugares certos para fazer isso, como os Driver Experience. Então, por que não postar aqui vídeos dentro destes eventos?

Teve gente chamando aos que foram contrários ao post, inclusive a mim, de falsos moralistas. Não podemos confundir falso moralismo com opinião formada. Em meu caso específico, comecei meus comentários naquele post falando exatamente que fiz e ainda faço muita coisa errada no trânsito e na vida também, portanto, fique claro que não tenho envergadura moral para me colocar como exemplo. Mas a diferença é que eu talvez tenha aprendido com meus erros maiores enquanto alguns, talvez, não tiveram a oportunidade de enxergar isso ainda, pelo amor ou pela dor como diz a sabedoria popular.

Eu tinha meus 20 anos quando estava literalmente “pilotando” meu Escort XR3 preto pelas ruas estreitas de um bairro aqui de São Paulo. Sábado à tarde, garoa fina, rua para fluxo e contra fluxo totalmente deserta, descida. Acelerei até que, quando estava perto dos 80km/h, um menino de dois ou três anos sai correndo de dentro de uma das casas, portão entreaberto, e vai para o meio da rua. Eu também tive habilidade para frear, reduzir marcha e parar a menos de meio metro do garoto de quem eu via só a cabeça. A mãe dele saiu correndo da casa ao ouvir a freada. Discuti com ela, ela me chamou de moleque, maluco, irresponsável, idiota. Eu disse as mesmas coisas a ela em relação aos cuidados com o filho. Nada aconteceu, mas é claro que eu poderia estar hoje na mesma situação de outros tantos que mudaram o curso de suas vidas por um momento de adrenalina. E eu tenho certeza que poucos aqui me defenderiam.

Já para o nosso drifter boy teve defesa de toda a parte. Citaram filmes de Hollywood, que desde sempre tem perseguição de carros entre polícia e bandido. Só que ande fora da lei lá na terra de Obama para ver o que lhe acontece. Citaram também que isto é um flagra de trânsito, o que corresponde ao objetivo do blog. Se assim fosse, não iriam faltar aqui vídeos de imprudências, imperícias, tragédias. Só faltaria pegar o patrocínio das concessionárias de rodovias, dos departamentos de trânsito estaduais e de algumas funerárias.

Citaram que o drifter boy não estava embriagado, então tudo bem, ele tinha controle total da situação. Tudo bem? E, claro, citaram também que “até piloto erra”. Sim, é um ser humano que, enquanto está exercendo sua profissão e competindo, está sujeito a errar como qualquer um de nós. Mas quando ele erra fora da pista, na vida real, as conseqüências são sérias quando estão em países sérios. Ninguém aqui leu que Lewis Hamilton foi preso pela polícia australiana este ano por condução perigosa, flagrado fazendo “zerinhos” com um Mercedes depois dos treinos livres do GP da Austrália? Que Kimi Raikkonen é outro caso de piloto que também foi preso por dirigir embriagado? Essa é a vida real de países de gente séria, não em país hipócrita como o nosso. Mas, já que falei em Fórmula 1, onde é raro aparecer um “drift”, Nelson Piquet o fez com maestria quando ultrapassou Ayrton Senna no GP da Hungria em 86. Talvez alguns aqui lembrem.

Transito é coisa muito mais séria do que a maioria pensa. As indústrias automobilísticas, ano após ano, colocam mais carros nas ruas e nas estradas. Sobra menos espaço, sobra mais gente despreparada e desequilibrada emocionalmente dirigindo. Não é por acaso que o número de vítimas fatais aumenta tanto. E é difícil, muito difícil e triste, ver um pai debruçado sobre o cadáver do filho coberto por um jornal no meio da rua. Às vezes, o filho era só o carona, e foi o amigo quem exagerou na dose do copo e do pedal da direita.

Cada um de nós é responsável pelo que faz e pelo que deixa de fazer, mas as conseqüências, muitas vezes, respingam em gente próxima. Eu mesmo sei que ainda vou passar muita angústia comigo mesmo, quando meu filho tiver habilitação para dirigir, quando meus pais saem para ir ao médico e encontram um “veloz e furioso” pelo caminho. Cabe a cada um de nós melhorar isso, independente do poder aquisitivo ou da habilidade, dos amigos ou da largura das costas de cada um. Nós podemos melhorar tudo que está aí e curtir nosso carro de maneira racional. Entre o bem e o mal, o pior é aquele que se acha acima de ambos. Eu sei exatamente onde estou, e você?

Um abraço.

Nota do editor: Para quem chegou agora e ainda não viu o vídeo, clique aqui e fique por dentro da discussão.

Lauro Vizentim

Lauro Vizentim é Engenheiro Mecânico, trabalha há mais de duas décadas na indústria de automóveis. Gosta de criação, design e de... carros. Quando estes três gostos se juntam em uma corrida, tudo se completa. Acompanha a Fórmula 1 desde criança e colabora com o No Trânsito desde 2009.

13 Responses

  1. Alexandre A. ctba pr says:

    Então, hoje abri meu lindo bloco de notas para pensar em algo para se colocar aqui, afinal, esta sim é um pessoa que merece aplausos. escrevi bastante coisa, apaguei, voltei a escrever e apaguei de novo. de tudo que escrevi só me veio uma coisa a cabeça, que realmente não compensa mais perder meu tempo em tentar abrir uma discução sobre o fato ocorrido.

    Creio que algumas pessoas baixam de mais o nível.

    Obs – Quando alguém colocou que aquele era o objetivo do site, pensei, quando eu entrei aqui era pra ver “O melhor da Fotografia Automotiva” lembro pelo menos, quando este era o slogan do site. e tais fotos ninguém poderia questionar suas qualidades.

    E Parabéns Lauro. tu tens se mostrado um cara bacana, alguém que merece respeito, por isso não irei “sujar” seu post com ofensas.

    Grande abraço a todos.

  2. Eduardo Fonseca says:

    Lauro, mais uma vez perfeito, Parabéns!!!!

    Seguindo o que o nosso amigo Alexandre escreveu, realmente não compensa perder o nosso valioso tempo com esta discussão. Nossa opinião já foi dada sobre o assunto, concordem ou não, gostem ou não. É apenas uma questão de respeito e boa educação.

    Forte Abraço e bom Domingo à todos.

  3. Fellipe says:

    Perfeito o texto, parabéns.
    Não cheguei a entrar na discussão porem quero aqui registrar que estou de acordo com o texto do Lauro, mas como sou um apaixonado por carros, velocidade, gasolina não posso dizer que não fiquei admirado com o ”drifter boy”, portanto analiso o fato de duas formas: a habilidade e o lado real, cruel.Bom acho que fiquei com o lado da vida real mesmo.

  4. Enéas Frazão says:

    Não precisamos justificar os erros alheios com os nossos próprios. Cada um escolhe a forma como prefere aprender na vida, por meio de conselhos, lançando mão do bom senso, ou arcando com as conseqüências de seus erros. A via pública não é lugar de competições ou de meras demonstrações de habilidade, pois também dela fazem uso os pais de família que precisam trabalhar todos os dias, os estudantes a caminho da faculdade, e os motociclistas e pedestres que gozam do mesmo direito constitucional de ir e vir que o rapaz que publicou o vídeo. Muito embora conte com uma habilidade acima da média ao volante, o que de fato chama a atenção do público a que se dedica este site, o rapaz talvez haja reconhecido por si só que a conduta sua não se encontra de acordo com o que se espera de um cidadão ciente de suas responsabilidades sociais. Vale lembrar, ainda, que o Código de Trânsito Brasileiro – CTB – em seu artigo 308, prevê tipo penal que consiste na conduta de “participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada”. Ora, a potencialidade lesiva da conduta do chamado “drifter boy” é inquestionável, por vezes passa em alta velocidade próximo de pessoas que o filmavam e fotografavam (e em caso de acidente, o fato de estarem alí por vontade própria não afastaria a configuração de um crime de homicídio culposo ou lesão corporal), e em determinado momento ainda desvia de outro veículo que vinha no sentido contrário da via. Freqüento diversos outros sites dedicados à fotografia automobilística, e acredito que este esteja entre os de maior qualidade. Reconheço a habilidade do rapaz, é invejável, no entanto, evitemos a apologia a tais condutas reprováveis. Talvez, o próprio “drifter” esteja repensando suas condutas neste momento, ou não, talvez esteja rindo bem alto e adorando toda a repercussão. Difícil saber, mas tão pouco importa, afinal, ele já deixou uma lição de como não se deve proceder enquanto cidadão de bem, “abusando” do direito de ir e vir ao qual me referi acima. E quase esqueço, a pena para o crime de transito que citei acima é de detenção, de seis meses a dois anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

  5. Alexandre A. ctba pr says:

    Apesar da Formatação do texto ENÉAS FRAZÃO, condordo com o que disse “Cada um escolhe a forma como prefere aprender na vida” fiquei pensando, como seria se o Guilherme tivesse postado um vídeo dele no Driver ? seria algo normal, afinal ele não é nada de mais, pegar um 350Z e usar freio de mão para fazer o carro “perder” a traseira não me faz pagar um ingresso para velo em autódromo fechado. Infelizmente o dinheiro ainda abre oportunidades, não é ? fica a dica.

  6. Victor BM says:

    É rapazeada, comer a mulher dos outros também não é legal, pois dela fazem uso pais de família e criancinhas inocentes. Mas cada um faz o que quer né tchêêê!!

    Brincadeiras a parte, apesar de não concordar em muita coisa com a rapazeada do “bem”, quando vi o texto do Lauro falei pro Guilherme: CARA TENS QUE POSTAR ESSE TEXTO!! huaehuae

    Teve partes do texto que vi situações semelhantes na minha vida, o texto me sugou, muito bom.

    Parabéns Laurão, bonito de ver a tua boa vontade de contribuir pra fazer uma sociedade melhor, mais inteligente e consciente.

  7. Alexandre A. ctba pr says:

    Obs- Victor BM, discordo, Comer a mulher dos outros é legal 😀

  8. Eduardo Fonseca says:

    Victor BM, tbm discordo do trecho citado pelo Alexandre…hahahah

  9. CASSIO A BORGES says:

    Só completando o que o nobre Lauro narrou, acredito eu que o risco da direção perigosa deve ser calculado, e jamais devemos expor a vida dois outros em perigo, e toda vez que assumimos o risco de cometermos imprudências devemos estar bem conscientes de estarmos fazendo e por um certo motivo e não tolamente. O maior problema é que muitos ficam viciados em adrenalina e cometem imprudências a todo momento, eu qdo faço isso é só de vez enquando, mas procuro estar bem conciente para que se algo der errado não ficar com o peso na conciência, (não estava fazendo aquilo tolamente), pois não adianta dizer que somos certinhos, anjinhos, porque isso é hipocrisia, então dirija com cuidado e corra riscos só. Esse é o meu entendimento e qdo tem que acontecer acontece a zebra mesmo com os certinhos.

  10. Eduardo Fonseca says:

    para quem deseja mais informações do desfecho no caso Nissan, segue mais um link:

    http://www.mmonline.com.br/noticias.mm?url=O_pedido_de_desculpas_da_Nissan&origem=mmbymail&id_noticia=144298

    abs

  11. marcel says:

    Concordo com você Lauro , concerteza os posts abaixo do vídeo tem uma certa porcentagem de inveja , não é possível colocar tanto defeito em um vídeo só!…
    Por que quando temos os eventos no interior e a galera vai com suas maquinas à 300km/h ninguém fala nada?
    Sendo q estão em uma rodovia com muito mais carros,caminhões e (ônibus com dezenas de vidas dentro)Ninguém fala mal,pelo contrário,o pessoal fica alucinado como eu também fico.
    E quando temos quase 10 minutos de vídeo no qual passa apenas um carro por que tanta crítica?

  12. Confesso que não havia pensado do lado mal do vídeo. O texto abriu meus olhos para um problema para o qual não havia atentado.

    Parabéns, por fugir do constumeiro conteúdo do site, correr o risco de ser xingado e rejeitado para expor sua opinião, Lauro, com fins morais, atitude muito louvável.

  1. 03/10/2010

    […] This post was mentioned on Twitter by No Trânsito, No Trânsito. No Trânsito said: Resposta do Lauro ao vídeo do 350Z fazendo drift em via pública: Entre o bem e o mal http://bit.ly/carHmY […]

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