Vi demais e ouvi de menos


Será que vimos a mesma coisa?

Vi dois carros prateados brigando pelo ouro, com direito a deslealdade e rompimento de amizade.

Vi um garoto dando trabalho a um veterano inglês que, sabiamente, se recuperou a tempo.

Vi um carro negro que parecia rápido, cair em descrença com um bico polêmico.

Vi dois pilotos de quem se esperava brigas intensas, simplesmente não se encontrarem na pista e pouco aparecerem sozinhos.

Vi um tetracampeão sucumbir a um sorridente e talentoso australiano, tão menino quanto ele.

Vi que uma equipe pode dar a volta por cima contando com um piloto considerado ultrapassado e outro já tido como temido.

Vi uma equipe perdida, de onde se esperava muito, mas que nada se obteve.

Vi um menino russo ser promovido graças a sua velocidade e arrojo.

Vi que a força do motor Mercedes não foi suficiente para manter a força de todas as equipes que o utilizaram.

Vi duas equipes ficando pelo caminho, sem dinheiro, sem recurso, sem dó.

Vi um garoto quase perder a vida e ter a culpa a si atribuída em causar o acidente que quase o matou.
Foi assim…

Vi os motores voltarem a ser turbinados, mas não ouvi o que queria.

No bico do corvo. A Lotus veio cheia de estilo e acabou se dando muito mal.

No bico do corvo. A Lotus veio cheia de estilo e acabou se dando muito mal.

Algumas das tantas coisas que vi eu não queria ter visto, mas faz parte da vida. Temos que entender sempre que a alegria de uns é a tristeza dos outros, e no campo esportivo é assim que sempre foi e será. Por isso, não me desce aquele discurso de jogador de futebol que põe Deus como responsável pela vitória. Que eu saiba, no Brasil, todos os times rezam demais e muitos deles jogam pouco.

Mas, focando na Fórmula 1, foi uma temporada parecida com algumas outras em que se teve uma equipe dominante contra o resto. Duas disputas, portanto. Uma interna, que dentro da equipe valia o título inédito para um dos pilotos ou o bicampeonato para o outro, de quem já não se tinha certeza alguma de que isso um dia aconteceria.

Eu pensava que o Rosberg não se daria nunca ao papel de vilão, assim como sempre achei que Hamilton seria para eternamente descontrolado emocionalmente. Vi, aliás, vimos, o contrário. Sem entrar em detalhes que tanto comentamos ao longo do ano, Rosberg perdeu e Hamilton ganhou de si mesmos.

Não conseguimos ver a briga dos pilotos da Ferrari. Alonso foi muito superior a Raikkonen, o que muitos já esperavam, mas eu não. Achei que o finlandês daria mais trabalho para Alonso e que provocaria a sua saída ao final da temporada. Pelo menos, acertei a saída do asturiano de Maranello, ainda que o motivo não tenha sido exatamente o excesso de gelo dentro dos boxes. Nas poucas vezes em que se depararam nas corridas, lutando por posições, Raikkonen até que deu um pouco de trabalho, mas sempre acabou superado por Alonso. Fiquei com a sensação de que perdemos muito nesta briga que não existiu entre os carros vermelhos.

Massa teve que se virar para mostrar que ainda tem lenha para queimar. Conseguiu.

Massa teve que se virar para mostrar que ainda tem lenha para queimar. Conseguiu.

E o que dizer de Vettel? Visivelmente incomodado com o novo conjunto da Red Bull, o tetracampeão fez uma temporada inimaginável ao final do ano passado. Pior. As únicas vitórias que não vieram da equipe Mercedes foram justamente dos outrora foguetes azuis, só que coube a seu companheiro Ricciardo tal honra. O sorriso aberto do australiano debutou no lugar mais alto do pódio em 2014 e parece que tomou gosto. Me lembro que ele havia escrito uma mensagem para Vettel após a temporada passada dizendo que era para Vettel se preparam, pois ele estava chegando. Considerada uma ousadia ou até mesmo uma prepotência, virou profecia na pista.

O arrojo no design do bico dos carros da Lotus, quando apresentados no início do ano, já apontava para aquilo que todos nós sabemos: ou seria revolucionário a ponto de ser copiado ou viraria vexame. A alternativa dois acabou sendo o desfecho desta inovação que, confesso, achei das mais esquisitas, mas gosto de coisas novas. Além de aberto, o bico era assimétrico, com um dos lados menor que o outro. Menção honrosa para a ousadia, mas zero para competência. É difícil imaginar que com tantos softwares e ensaios virtuais, um projeto seja tão mal sucedido assim. Mas foi. Com isso, Romain Grosjean não conseguiu nenhum resultado expressivo, justamente quando estava em ascensão quando 2013 terminou. O mesmo não se pode dizer de Maldonado, que mesmo lá atrás no grid, andou aprontando das suas (quem não se lembra do capotamento de Gutiérrez no Bahrein?).

Falar em Sauber é lamentar um projeto que, assim como ocorreu na Lotus, andou para trás. Sempre brigando com a própria equipe de Enston para ver qual delas seria degolada no Q1, a Sauber tinha tudo para poder evoluir neste ano que se encerra, mas faltou dinheiro. Sem dinheiro, sem chances. O único que talvez não tenha se importado com isso foi Nico Hülkenberg, que se mandou para a Force India antes. Se bem que nem a equipe indiana andou lá essas coisas nesta temporada.

Adiós bambino! Fernando  Alonso abandona os tifosi e vai em busca de títulos.

Adiós bambino! Fernando Alonso abandona os tifosi e vai em busca de títulos.

A dupla era considerada muito veloz, mas a Force India teve um dos anos mais discretos desde que estreou na categoria. Não que Nico, o Hulk, e Sergio Pérez não tenham se esforçado, mas das equipes que andaram com motor Mercedes este ano, a Force India foi disparadamente a pior delas. Uma pena, porque realmente ambos dariam muito trabalho e brigariam por pódio com frequência. Faltou uma força (leia-se dinheiro, de novo) para que as evoluções ao longo da temporada fossem feitas e melhores resultados viessem.

A Toro Rosso não ameaçou ninguém, mas foi um carro excelente para o russo Daniil Kvyat mostrar que a equipe estava certa em apostar na juventude de seu talento, o que lhe rendeu uma meteórica subida na carreira, já o alçando a titular da equipe de Milton Keynes no lugar de Sebastian Vettel. Com frequentes aparições no Q3, a filial da equipe austríaca não conseguiu reverter em pontos os bons desempenhos nos treinos, provando que treino é treino, e jogo é jogo.

Dizem que dinheiro não traz felicidade. Em 2014 a falta dele não trouxe também os carros da Marussia e da Caterham para o grid nas provas finais, exceto a segunda delas, que correu em Abu Dhabi meio que para cumprir tabela depois de uma “vaquinha virtual” jamais vista na história da Fórmula 1. Ambas são vítimas da política financeira tida como injusta e conduzida por Bernie Ecclestone, e que quase levou estas últimas que eu também citei (Force India e Sauber principalmente).

Vettel passou em branco e deixou a casa que lhe deu tudo.

Vettel passou em branco e deixou a casa que lhe deu tudo.

Bernie precisa largar mão de ser um ditador e abrir os ouvidos para o novo, mas acho que é pedir demais para ele nesta altura da vida. Afinal, ele nunca foi santo como mostrado em seu livro.
Um ano triste este que se vai.

Entre tantas vítimas, a maior delas se chama Jules Bianchi. O francês foi vítima de um acidente bizarro, do qual permanece desde o GP do Japão inconsciente, passando pelo estado de coma induzido. Mesmo depois de ter sido retirado deste estágio, não despertou mais até o momento.

Este acidente, uma semana antes do histórico primeiro GP da Rússia, reacendeu a discussão sobre a eficácia da segurança na categoria, nas mesmas proporções como aconteceu há vinte anos, com a morte de Ayrton Senna. E, por mais incrível que pareça (embora eu até entenda isso), Bianchi foi considerado o culpado pelo acidente na escorregadia pista de Suzuka. Não há como negar que a Fórmula 1 está muito mais segura e que evolui sempre, mas a imagem de Bianchi batendo com a cabeça em um trator é de um amadorismo quase inexplicável. Aconteceu, temos que ver o que aconteceu e olhar os aperfeiçoamentos. Ver Bianchi fora de ação, talvez definitivamente, é muito dolorido.

Confesso que ter visto o acidente foi traumatizante, aterrorizante para mim. Aquela imagem do carro sem o santoantonio me deu uma impressão ainda pior do que o que realmente aconteceu, mas isso não tira a gravidade nem a brutalidade do mais grave acidente dos últimos anos.

Jules Bianchi durante o GP de Monaco. Únicos pontos da Marussia e talvez do próprio francês.

Jules Bianchi durante o GP de Monaco. Únicos pontos da Marussia e talvez do próprio francês.

Deixei para falar por último da Williams e de Felipe Massa, só que vou passar o Valtteri Bottas, o companheiro do brasileiro, na frente. Ele, Bottas, amadureceu muito a ponto de se tornar um piloto muito respeitado no grid. Ele é rápido, não comete erros, não se intimida, não é inconstante. Ao contrário de Massa, vem em uma ascensão desde que estreou e, se derem a ele um carro vencedor…

Se Bottas apareceu bem, isso pode ser dito de Felipe Massa também, principalmente no que diz respeito a segunda metade do ano, onde deixou de lado os acidentes e passou a pontuar com frequência. Foram dois pódios seguidos no final do ano, três no total ao longo da temporada. Ambos, Bottas e Massa, obtiveram estes resultados graças ao ressurgimento da equipe Williams, que voltou a figurar entre as equipes de ponta, sendo a terceira força do mundial e a equipe que realmente chegou a ameaçar alguma vitória da Mercedes, apesar de ter sido a Red Bull quem venceu além da equipe alemã, como citei anteriormente.

E tudo isso sem contar o que eu não vi…

Depois de mais de uma década, tive de assistir algumas provas deste ano reprisadas. Ao mesmo tempo, pude perceber que o leitor do No Transito está se tornando mais seletivo, mais exigente, mais atento, aumentando o desafio constante de fazer as resenhas e deixá-las interessantes, sem ser repetitivo. Outros veículos de comunicação, sempre mais rápidos e de qualidade superior quando o assunto é Fórmula 1, aumentam ainda mais o desafio. Mas sou grato aos meus 98 GPs completados este ano aqui neste espaço e ao encerramento de mais um ano que, no âmbito pessoal e profissional, foi bem agitado.

Me despeço torcendo para que o ano que vem seja melhor para cada um de vocês e vossas famílias. Que a pole seja constante e que as voltas mais rápidas demorem para que possamos curtir a paisagem. Que possamos celebrar cada vitória com quem mais amamos e que, ao olharmos no retrovisor do ano que se aproxima, possamos ver nossas adversidades superadas e bem distantes.

Um grande abraço, boas festas e até 2015!

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Lauro Vizentim

Lauro Vizentim é Engenheiro Mecânico, trabalha há mais de duas décadas na indústria de automóveis. Gosta de criação, design e de... carros. Quando estes três gostos se juntam em uma corrida, tudo se completa. Acompanha a Fórmula 1 desde criança e colabora com o No Trânsito desde 2009.

2 Responses

  1. Metal Omega says:

    Show de bola, bom resumo, não pude ver tudo o que rolou, mas gosto muito da F1, uma das únicas coisas que faço questão de ver na TV.
    Que o ano de 2015 nos traga mais surpresas

  2. Glauco de F.Pereira says:

    Belo relato, Lauro, como sempre. Elogiar seus textos já virou lugar comum. Já tá começando a faltar palavras adequadas…

    Aproveitando o fim de mais um ano, é hora de parabenizar a equipe de “No Trânsito” que é um espaço voltado para os apaixonados por carros e velocidade. Estendo também os desejos para toda a turma que participa do bolão e, como diz o nosso amigo Fábio Abade, “…vamo que vamo!” de preferência a mais de 300 km/h!

    E que venha 2015 com mais de tudo daquilo que gostamos! Carros, F1 e velocidade!

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